quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Figuras Geométricas













As figuras geométricas enquanto suporte para a aprendizagem em
geometria: um estudo sobre a heurística e a reconfiguração


Resumo
Este texto trata da questão heurística das figuras geométricas para a resolução de problemas em
matemática no ensino fundamental. Refere-se, portanto, a uma operação de tratamento figural,
ou seja, a reconfiguração, por possibilitar a produtividade heurística de figuras geométricas.
Apresenta-se uma breve discussão teórica e histórica sobre esta operação. Por fim, mostram-se
alguns exemplos, realizados em pesquisas por alunos, sobre o uso da operação de reconfiguração
como possibilidade heurística. Conclui-se que a tomada de figuras com sua produtividade
heurística para a resolução de problemas matemáticos permite não só o desenvolvimento da
capacidade visual, como também, da aprendizagem matemática.
Palavras-chave
Heurística, visualização, reconfiguração geométrica, aprendizagem matemática.
Introdução
Diversas pesquisas em educação matemática, realizadas nos últimos tempos, constatam
que para o ensino da geometria euclidiana e espacial, particularmente, o uso do desenho, ou seja,
da figura que representa a situação matemática em questão, é fundamental para a aprendizagem
matemática. De fato, a figura desempenha um papel importante na aprendizagem geométrica,
sobretudo na resolução de problemas, pelo seu suporte intuitivo e por desempenhar uma função
heurística. Então, importante saber de que modo o ensino pode lançar mão do uso de figuras
geométricas, não só como instrumentos mediadores de conhecimentos geométricos, mas
também, para o desenvolvimento da visualização e, conseqüentemente, para a aprendizagem
matemática de uma forma geral.
Neste sentido, destacamos as pesquisas realizadas por MESQUITA (1989), PADILLA
SANCHEZ (1992) e por FLORES BOLDA (1997), que procuraram resgatar o papel heurístico
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das figuras geométricas planas na resolução de problemas matemáticos, comprovando que a sua
utilização exige um “aprender a ver e a ler” estas figuras. Além disso, um trabalho realizado
sobre as possíveis apreensões de uma figura geométrica, particularmente, o caso da
reconfiguração, pode contribuir sensivelmente para uma melhor desenvoltura na aprendizagem
em matemática dos alunos.
A preferência por métodos didáticos que privilegiam a visualização, com ênfase na
heurística para a resolução de problemas matemáticos, vem do fato de que se acredita que o
incentivo a tal habilidade poderá suprir uma deficiência do ensino convencional ao mesmo
tempo em que complementaria o quadro de um aprendizado de outra forma incompleto.
Como em nossas escolas elementares e universidades, os aspectos ligados à visualização,
à heurística, têm sido pouco enfatizados, buscamos, neste trabalho, contribuir para sua
valorização, enfatizando a visualização, ou melhor, a heurística de figuras geométricas planas a
partir do uso da reconfiguração, ou seja, de um tratamento puramente figural na resolução de
cálculos de áreas em exercícios para o ensino fundamental.
Então, este trabalho traz uma reflexão sobre a função heurística nas figuras geométricas,
bem como uma discussão teórica e histórica de uma possibilidade heurística no uso de figuras
geométricas planas para a resolução de problemas matemáticos, ou seja, a operação de
reconfiguração e, por fim, apresentam-se exemplos do uso da operação de reconfiguração para o
cálculo de áreas de figuras planas no ensino fundamental decorrentes de pesquisas em educação
matemática.
O funcionamento heurístico de uma figura.
O papel intuitivo e heurístico que as figuras têm na representação geométrica é uma
opinião comumente admitida, isto porque as figuras permitem analisar uma situação em
conjunto, são um meio mais direto para explorar os diferentes aspectos, antecipar os resultados e
selecionar uma solução para o problema (DUVAL, 1995)
De fato, as figuras representam um auxílio na resolução de problemas. Mas, para a
maioria dos alunos, elas não têm cumprido este papel. Normalmente, trabalha-se com as figuras
numa abordagem exclusivamente psicológica da percepção, aquela imediata, a qual não dá
condições ao aluno para olhar a figura sob outros aspectos. Quer dizer, olhá-la de outros modos,
sob outras configurações, o que implica na correspondência entre a visão de uma seqüência de
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sub-figuras pertinentes, a união destas sub-figuras formando um todo, e ainda, a correspondência
da figura e o texto, possibilitando, enfim, a exploração heurística.
A percepção da organização do conjunto das formas de uma figura leva à realização de
muitas reconfigurações, daquelas que são visíveis e possíveis, ou seja, a visão de partes
reagrupadas num novo todo. Trata-se, portanto, da apreensão operatória da figura. Segundo
DUVAL, esta forma de apreensão “... é centrada sobre as modificações possíveis de uma figura
inicial e, em seguida, sobre as reorganizações perceptivas que estas modificações acarretam.”
(1988, p. 62). Ela permite dar um sentido dinâmico às características da figura, podendo-se,
assim, fazer manipulações, física ou mental, sobre o todo ou parte da figura.
Como toda figura pode ser modificada de muitas maneiras, DUVAL (1988) distinguiu
três grandes tipos de modificação: mereológica, ótica e posicional. Em particular, aqui,
trataremos principalmente da modificação mereológica por possibilitar o uso da operação de
reconfiguração e, sobretudo, por possibilitar o uso de figuras com sua função heurística na
resolução de problemas matemáticos.
Reconfiguração: uma possibilidade heurística de tratamento figural.
O uso de figuras como ferramenta heurística, bem como para auxiliar na visualização,
compreensão e resolução de problemas matemáticos, constitui-se como um forte aliado para a
educação matemática. Neste sentido, o que nos interessa ver aqui é o trabalho na figura
propriamente dita, quer dizer, o tratamento que se pode fazer numa figura geométrica a fim de
achar o caminho de uma solução para um problema matemático, ou seja, tomar a figura com sua
função heurística.
Como foi dito anteriormente, a produtividade heurística de uma figura, para a resolução
de problemas matemáticos, é dependente da possibilidade de se tomar esta figura sobre outras
formas, ou seja, sobre a possibilidade de se aplicar nela tratamentos figurais. Neste caso, a
operação de reconfiguração é uma importante modificação, relacionada com a apreensão
operatória, e bastante requerida na resolução de problemas em geometria.
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Tomemos, por exemplo, o problema de Euclides apresentado em DUVAL (1995, p.199-
202): Mostrar a igualdade das partes 1 e 2 qualquer que seja a posição do segmento AB.
A E
D
1
2
H B F
Este problema pode ser resolvido por supressão dos triângulos DEH e EHF de duas
configurações não-convexas e iguais:
ou pela supressão sucessiva de duas partes elementares iguais:
seg uido d e
Estes procedimentos, observados em alunos de 10 a 13 anos em Mesquita3, citado por
DUVAL (1988, p.65), mostram a resolução de um problema em geometria usando várias vezes a
reconfiguração.
Assim, pode-se concluir que a operação de reconfiguração consiste, basicamente, na
complementaridade de formas, ou seja, das partes obtidas por um fracionamento que podem ser
reagrupadas em sub-figuras incluídas na figura inicial. Portanto, o fracionamento de uma figura,
ou o exame desta a partir de suas partes elementares, permite a aplicação da operação de
reconfiguração.
3
MESQUITA, A. Sur une situation d'éveil à la déduction en géométrie. Educationnal Studies in
Mathematics, 20, 55-77. 1989.
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A heurística e os caminhos na história.
Ora, uma análise rápida pela história e podemos encontrar tantos outros exemplos do uso
da operação de reconfiguração como possibilidade heurística para a resolução de problemas.
Leonardo da Vinci e suas resoluções matemáticas é um dentre tantos. Ele desenvolveu estudos
sobre as proporções geométricas, tanto da geometria plana como da geometria dos sólidos
tridimensionais, estabelecendo a equivalência entre as áreas de figuras retilíneas e curvas, o que
chamou de Scienza de equiparantia. A figura abaixo é um exemplo disto. Ele fez a construção de
uma figura geométrica curvilínea tendo a mesma área que uma figura retilínea dada, ou vice
versa, quer dizer, a equivalência entre um triângulo retilíneo e um triângulo curvilíneo.
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Ainda, no vasto campo da história, observa-se que no Papiro de Ahmes ou Rhind (1650 a.C.) a
solução apresentada para o Problema 51 - Qual é a área de um triângulo de lado 10 jet e base 4
jet? - mostra o uso da figura para a resolução do problema que se pode considerar como sendo
uma reconfiguração.
Segundo BOYER (1974), “Ahmes justifica seu método para achar a área sugerindo que o
triângulo isósceles pode ser pensado como dois triângulos retângulos, um dos quais pode ser
deslocado de modo que os dois juntos formam um retângulo.” (p.13).
Heurística, reconfiguração e aprendizagem matemática.
Os dois exemplos de uso de reconfiguração no cálculo de área apresentados a seguir são
tirados de FLORES BOLDA (1997, p.85-86) observados em alunos de 5a série do ensino
fundamental.
A questão propunha o cálculo da área da figura hachurada sendo dada a figura em
verdadeira grandeza em um quadriculado de 1cm por 1cm.
Em ambos os casos os alunos determinam corretamente a área das figuras transformando-
as em um retângulo de 3cm por 6cm, conforme registros nas figuras. Mas, no lugar dos
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problemas terem sido resolvidos por reconfiguração, os alunos poderiam ter usado, por exemplo,
a formulação seguinte (em cm2):
π × 32 2 2
2 π×3 2 π×3
+ (3 − ) + (3 − )
2 4 4
No entanto, pode-se perceber que o uso da reconfiguração torna os cálculos dos
problemas bem mais simples, além de auxiliar no trato da visualização.
Seguindo esta linha de problemas de cálculo de áreas de figuras geométricas planas, um
outro exemplo, retirado de FLORES BOLDA (1997, p.122), resolvido por alunos de 5a série do
ensino fundamental é o seguinte:
Sabe-se que o tratamento operatório na figura deverá estar de acordo com aquilo que é
solicitado no problema. Neste caso, o que é pedido é o cálculo da área da região hachurada tendo
em vista o quadrado ABCD de lado 4 cm. O aluno buscou uma reconfiguração que permitiu –lhe
a configuração de uma outra figura, ou seja, um retângulo de 2 cm de altura por 4 cm de largura,
o que implica numa área de 8 cm2. No entanto, para este aluno a resposta do cálculo da área da
figura ficou em 2 cm2 . Ora, isso significa que o aluno faz uma boa reconfiguração, porém não
realiza uma coordenação entre a figura e o que é dito no enunciado, procedendo assim por
contagem de quadrados.
Vê-se, desta forma, que as possibilidades heurísticas de uma figura requer não só uma
habilidade do visual mas, também, competências outras que permitam concluir corretamente o
exercício, ou seja, para além de uma visão geral que engloba figura e enunciado é preciso
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dominar conhecimentos matemáticos. Tudo isto leva o aluno a uma desenvoltura frente a
aprendizagem matemática.
Conclusões
Pensar o caso da reconfiguração de figuras geométricas planas no ensino de matemática
como possibilidade heurística na resolução de problemas matemáticos, significa trazer para a
educação do aluno novas formas de resolução para uma mesma atividade matemática. Isso quer
dizer que, por exemplo, ao invés do aluno resolver seus exercícios de cálculo de área usando
somente o procedimento de fórmulas, ele terá outra alternativa de solução, ou seja, a busca
heurística na própria figura. Isso significa também, possibilitar ao aluno uma desenvoltura tanto
nas suas formas de pensar como na sua forma de olhar e, além de tudo, de raciocinar.
A operação de reconfiguração é importante já que é a prática dos movimentos realizados
numa figura que permite seu destaque heurístico. Além disso, habilidades tais como visualizar
uma figura em diferentes posições, prever conseqüências da aplicação de determinados
movimentos sobre figuras geométricas, tratar de diferentes formas as informações visuais,
podem ser desenvolvidas mediante a aprendizagem desta operação figural.
Há que se considerar, no entanto, que a operação de reconfiguração não se faz evidente,
tampouco de maneira simples, para muitas das figuras que usamos no ensino. Fatores diversos
podem inibir, e até mesmo dificultar ao invés de auxiliar, o uso desta operação. Contudo, a busca
por caminhos heurísticos, para a resolução de problemas, possibilita lidar com as figuras para
além da função estritamente perceptiva, ou seja, com a apreensão operatória.
Vale lembrar que a intuição heurística que traz uma figura pode levantar percepções
distintas e envolver outros tantos fatores que possam auxiliar ou dificultar este papel heurístico.
Isso significa que a utilização de figuras geométricas na resolução de problemas matemáticos
requer de fato uma certa aprendizagem de leitura e interpretação destas. Talvez esteja aí uma
oportunidade para pensar o papel do professor, ou seja, na formação de um professor tanto para o
uso de novos modos de ensinar, como para com seu conhecimento de uma operação de
tratamento puramente figural.
Enfim, a discussão e a reflexão sobre semiótica, representação e aprendizagem
matemática tem sido a base dos estudos realizados pelo GPEEM (Grupo de Pesquisa em
Epistemologia e Ensino de Matemática) da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Por
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isso, da continuidade de pesquisas realizadas anteriormente, como as mostradas aqui, é que
muitos outros estudos, ainda em andamento, vem sendo desenvolvidos por este Grupo sobre a
função heurística das figuras, sua função de representação em problemas matemáticos,
considera-se um dos temas essenciais dentre os objetivos do Grupo e que vem sendo tratado com
afinco por estimar que o uso de figuras, a compreensão deste uso e suas possibilidades de auxílio
na resolução de problemas matemáticos é importante para a aprendizagem matemática.
Bibliografia
BOYER, C. B. História da Matemática. Tradução de Elza F. Gomide. São Paulo: Editora E.
Blücher Ltda e Editora da Universidade de São Paulo, 1974.
DUVAL, R. Sémiosis et pensée humaine: registres sémiotiques et apprentissages intellectuels.
Berne: Peter Lang. 1995.
DUVAL, R.. Approche cognitive des problèmes de geométrie en termes de congruence. Annales
de didactique et de sciences cognitives, v1, p.57-74. 1988.
FLORES BOLDA, Cláudia. Geometria e visualização: desenvolvendo a competência heurística
através da reconfiguração. 152 p. Dissertação (Mestrado em Educação) - Centro de Ciências da
Educação, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. 1997.
MESQUITA, Ana. L'influence des aspects figuratifs dans l'argumentation des élèves en
géométrie. Strasbourg: Thèse-Université Louis Pasteur, 1989.
PADILLA SANCHEZ, V. L'influence d'une acquisition de traitements purement figuraux pour
l'apprentissage des mathématiques. Strasbourg: Thèse-Université Louis Pasteur, 1992.
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